PREFÁCIO da 2a EDIÇÃO (2022)
- rugai9
- 2 de dez. de 2024
- 8 min de leitura
Atualizado: 7 de dez. de 2024
Publicar um livro, sobretudo impresso, é quase uma ousadia neste tempo em que vivemos submergidos no imediatismo ansioso das redes sociais, quando dez linhas tornam-se sinônimo de “textão”. Há, hoje, mais texto sendo publicado do que lido, mais livros que leitores, mais gente falando do que ouvindo. Nessas condições, diálogo e reflexão se perdem, especialmente num país que saltou direto do analfabetismo funcional para as redes sociais, sem passar pela educação pública de qualidade. Talvez, por isso, eu tenha certa relutância em publicar uma segunda edição do livro, o que para mim não é obrigação profissional, parte de uma carreira acadêmica, nem fonte de renda.
A motivação para republicá-lo, todavia, vem da demanda que há algum tempo me chega, pelo livro esgotado, mas, acima de tudo, vem da convicção de que essa é uma história muito especial, feita de pessoas de carne e osso cujo percurso, pensamento e ação merecem ser contados para mais gente. Quem seguir na leitura entenderá o quão extraordinária é a história. Da minha parte, há o compromisso em partilhá-la e a satisfação de poder fazê-lo.
O livro não diz respeito apenas aos interessados no anarquismo, mas a todos que de alguma forma pretendem conhecer um pouco mais da América Latina, de nossos vizinhos tão desprezados pelo olhar eurocêntrico. A história deste continente tem paralelos que começam na colonização, prosseguem nas independências e se estendem ao início das lutas sindicais, ao ciclo “populista” e às ditaduras militares iniciadas pelo Brasil em 1964, período do qual esta obra trata.
Assim chega, afinal, esta 2ª edição, devidamente revisada. Fruto de uma pesquisa iniciada em 1997, o texto tornou-se a dissertação de mestrado defendida em 2003. No ano de 2012, ela foi adaptada para a 1ª edição em livro, esgotada há anos. Tal intervalo de tempo tem os seus motivos.
Primeiro, há a intenção de apresentar ao leitor um trabalho de pesquisa cuidadoso, que ofereça um texto à altura de uma história tão ímpar quanto a da FAU e do anarquismo uruguaio. Segundo, o autor que aqui escreve não está inserido numa instituição acadêmica. Assim, por um lado não tenho o “bônus” das condições e do tempo dedicado à pesquisa; por outro, não tenho o ônus da sujeição à rotina de publicações, produtividade e rankings, cada vez mais em voga nas universidades, o que tem degradado e empobrecido grande parte de sua produção. Tal situação impõe seu preço e seu tempo e, assim, o texto sai quando pode, mas sai da forma que deve sair.
Esta 2ª edição chega num dos períodos históricos mais regressivos da história do Brasil. Desde o golpe de 2016, a burguesia rompeu o pacto de conciliação de classes, adotando um ultraliberalismo na economia, o qual promove ataques brutais contra os direitos e as condições de vida da classe trabalhadora brasileira. Politicamente, o pêndulo que se inclinou à direita, com Temer, atingiu “outro patamar” em 2018, com a eleição de um presidente fascista.
Durante a revisão, foi inevitável observar as semelhanças entre a atual situação brasileira e o período de 1967-1973 no Uruguai, chamado de “ditadura constitucional”, que precedeu o golpe militar. Os paralelos são vários: a escalada autoritária, as políticas neoliberais, os ataques contra a classe trabalhadora e as vacilações conciliadoras de parte da esquerda, que de recuo em recuo só deram mais campo ao golpismo da direita. Àquela época, a América Latina entrava num novo ciclo autoritário: golpes militares e a emergência de ditaduras interrompiam qualquer perspectiva de desenvolvimento nacional autônomo em benefício dos setores populares, dentro da ordem e da institucionalidade. Os debates sobre os meios de transformação social na periferia capitalista e sobre a exigência e as possibilidades de uma ruptura revolucionária estavam na ordem do dia. No Uruguai, dentre os que entendiam essa ruptura como uma necessidade, a luta armada era debatida e realizada sob diversos enquadramentos estratégicos, em variadas modalidades de ação e formas organizativas, diferenças quase sempre ignoradas em críticas que fazem tábula rasa da luta armada. A esse respeito, a estratégia de “duas patas” da FAU, distinta do foco guerrilheiro e crítica para com ele, é uma contribuição original e pouco conhecida, cuja atuação durante o período merece um olhar atento.
Recentemente, na América Latina e no Brasil, outra vez um ciclo de governos progressistas (com doses maiores ou menores de protagonismo popular, a depender do país) foi interrompido por golpes em novos formatos, que recolocaram a direita no poder e promoveram duros retrocessos. Uma vez mais a realidade nos lembra o quão estreita e temporária é a margem de tolerância das burguesias periféricas para a conciliação de classe e para avanços sociais. Mais do que isso, a realidade mostra que a burguesia, quando julga necessário, não vacila em promover a ruptura dos limites institucionais virando a mesa do “jogo democrático”. Ignorar esse fato, por diversas vezes repetido na história brasileira e latino-americana, seria nos condenar a esse “eterno retorno” de pequenos e breves avanços sucedidos por grandes e longos retrocessos. Que este momento trágico de nossa história possa ao menos firmar a compreensão sobre a necessidade de se construir um protagonismo popular, independente e para além dos limites da luta institucional, esta tão facilmente descartável pela burguesia. Mais do que isso, é preciso aguçar a consciência de que, numa ascensão das lutas, será preciso enfrentar situações de ruptura e, portanto, preparar-se para isso. Nesse sentido, a experiência da FAU é mais do que inspiradora.
Quanto ao texto, observado seu percurso nesses vinte anos, pode-se dizer que ele “envelheceu bem”. Dele decorreram muitos outros trabalhos — citando ou omitindo a pesquisa —, que exploraram questões e temas específicos, sobretudo na última década. Na crítica historiográfica em especial, três questões levantadas pela pesquisa merecem menção.
No final dos anos 1990, era lugar-comum, na historiografia brasileira, caracterizar o sindicalismo dirigido pela militância anarquista nas primeiras décadas do século XX como “anarcossindicalista”, consenso que abarcava quase a totalidade dos estudiosos desse período, inclusive os de orientação anarquista. A pesquisa sobre a FAU, valendo-se da história comparada de Uruguai, Argentina e Brasil, concluiu sem dificuldade que a definição desse sindicalismo como “anarcossindicalista” era superficial e dedutiva, algo como “anarquistas no sindicato = anarcossindicalismo”; além de ser anacrônica, uma vez que o termo não era empregado e nem conhecido na época. Ignoravam-se os amplos debates sobre concepção sindical dentro do próprio anarquismo e esvaziava-se o termo de qualquer conceituação. No mesmo período, outros estudos concluíam pela distinção entre duas concepções sindicais, em especial o trabalho de Edilene Toledo (1). Todavia, esse avanço acarretou outro equívoco: avaliar o chamado “sindicalismo revolucionário” como uma estratégia alheia ao anarquismo. Ainda que na Europa nem todos os seus formuladores fossem oriundos do anarquismo, isso não anulou a influência anarquista nessa concepção sindical e, sobretudo, o fato de que na América Latina ela foi defendida e implementada sob a direção de anarquistas. Tanto na história sindical argentina quanto na uruguaia, conviveram e disputaram hegemonia, ao mesmo tempo, duas centrais sindicais dirigidas por anarquistas: uma delas sindicalista revolucionária, outra “anarcossindicalista”, ou melhor: “forista”. Essa é uma questão da maior importância para a compreensão mais profunda sobre o sindicalismo na América Latina nas primeiras décadas do século XX. Dessa forma, embora não fosse o tema central da pesquisa, restou nítida a distinção entre sindicalismo revolucionário e “anarcossindicalismo”, assim como a conclusão de que a forma vigente no Brasil foi, e fato, o sindicalismo revolucionário.
Uma segunda questão se refere à contribuição da pesquisa para o debate acadêmico e militante relativo ao anarquismo no Brasil. Noções infantilizadas e caricatas a respeito do anarquismo, bastante distorcidas em relação à história concreta dessa corrente, eram e ainda são compartilhadas por seus críticos e também por adeptos que atribuem sinal positivo a tais concepções de “anarquismo”. Assim, a pesquisa e a publicação deste livro situam-se num quadro mais amplo, em que estudiosos e militantes buscaram um conhecimento mais rigoroso que aprofundasse a compreensão a respeito do anarquismo. Paralelamente, na segunda metade da década de 1990, a FAU se tornou conhecida no meio libertário brasileiro. Ela inspirou uma parte dos anarquistas brasileiros e foi modelo de organização para eles, absolutamente carentes de referências de luta e organização concretas no meio libertário brasileiro. As reações a esse “novo” anarquismo foram imediatas (são abordadas na introdução), mas pouco a pouco, nas duas décadas subsequentes, o anarquismo sintonizado com a FAU, chamado de “especifista”, ganhou espaço e reconhecimento no meio libertário e na esquerda. Ainda que persistam críticas e a adesão prática a essa corrente não seja majoritária entre os libertários, pode-se dizer seguramente que o anarquismo de intenção militante e com alguma presença social no Brasil veio do “especifismo” ou se construiu a partir de críticas a ele. Ao mesmo tempo, a combinação de estudos recentes e de uma militância renovada fez com que expressões mais bizarras de anarquismo individualista e comportamental perdessem legitimidade no próprio meio libertário.
Uma terceira questão abordada pelo livro diz respeito à chamada “Operação Condor”. Na época da pesquisa, esse nome soava como “teoria da conspiração” para muitos estudiosos da academia. O trabalho nos arquivos, porém, constatou ampla documentação comprovando a sistemática troca de informações e o planejamento de ações repressivas e de inteligência entre as ditaduras do Cone Sul, muitas delas atingindo a militância anarquista uruguaia, inclusive em solo brasileiro e no exílio europeu. De lá para cá, ampla documentação foi sendo revelada e os estudos a respeito se multiplicaram. Nesse ponto, vale ressaltar o quanto a experiência vivida por militantes e organizações do período foi fundamental para direcionar a pesquisa acadêmica, que só mais recentemente foi capaz de expor, de forma cabal, essa articulação repressiva que tantas vidas custou.
Esta segunda edição não apresenta alterações significativas na abordagem do assunto. As mudanças corrigiram erros de redação e alteraram muitos pontos, visando oferecer ao leitor um texto com mais clareza e fluidez. Algumas notas adicionais foram acrescentadas, mencionando publicações e acontecimentos posteriores à primeira edição. Muitas citações da bibliografia foram incorporadas ao texto, com as notas de referência mantidas. Quanto às citações das fontes, optou-se por mantê-las em destaque.
A quantidade de notas de rodapé pode parecer excessiva e incômoda para muitos, o que é compreensível. A intenção é simplesmente fazer referência à bibliografia da qual a pesquisa é tributária, trabalho intelectual de muitos pesquisadores que merece ser devidamente citado. A omissão, muitas vezes justificada em nome da “leveza” da leitura, não raro é utilizada por alguns autores que se apropriam da contribuição alheia, apresentando como suas e “originais” as ideias e informações apropriadas do trabalho de terceiros, prática sórdida e desonesta, cada vez mais rotineira no polido meio acadêmico. Assim, longe de “valorizar” o autor deste livro, o propósito das notas é dar o devido crédito ao trabalho coletivo de dezenas de estudiosos sem os quais esta pesquisa seria impossível.
As notas foram mantidas no rodapé das páginas, o que pode incomodar, mas permite sua leitura imediata, ao contrário das notas em fim de capítulo ou do livro, que acabam invariavelmente desprezadas diante do acesso enfadonho. As citações foram corrigidas segundo as normas ortográficas vigentes e as traduções são de responsabilidade do autor.
Esta 2ª edição não seria possível sem o meticuloso e rigoroso trabalho de revisão de Dennis Conti Nascimento, marcado pelo profissionalismo e pela paixão pelo assunto. Muito do aprimoramento do texto deve-se ao seu trabalho.
Por fim, lembro que poucos anos atrás alguém escreveu que a leitura era um “luxo” dos doentes, prisioneiros, aposentados e estudantes. Talvez hoje, com a internet e as redes sociais, esse “luxo” seja ainda mais restrito, pois, ainda que tenhamos tempo, a dificuldade para se concentrar num livro parece ainda maior. Fica o convite do autor para você: molhe os pés nas primeiras páginas e quem sabe elas estimulem um mergulho.
Ricardo Ramos Rugai
(1) TOLEDO, Edilene. Travessias Revolucionárias: ideias e militantes sindicalistas em São Paulo e na Itália (1890-1945). Campinas: EdUNICAMP, 2004.


Comments