PREFÁCIO da 1a EDIÇÃO (2012)
- rugai9
- 2 de dez. de 2024
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Atualizado: 8 de dez. de 2024
PREFÁCIO da 1a EDIÇÃO (2012)
“A central sindical se chama CNT, sua bandeira é vermelha e negra e na entrada da sede está o retrato de um militante anarquista, fundador e dirigente dela. O país vive um clima de agitação política e social intensa, e os anarquistas têm presença ativa no movimento sindical e nas ações diretas violentas levadas a cabo por um setor de sua federação.”
O parágrafo acima não se refere ao anarquismo espanhol das primeiras décadas do século XX, mas à Federação Anarquista Uruguaia — a FAU —, um partido anarquista formado na década de 1950 que, a partir de então, desempenhou importante papel nas lutas sociais do país rio-platense, tendo centenas de militantes nesse
período (1), atuando em importantes sindicatos, dirigindo-os e aglutinando os setores de esquerda mais combativos no Uruguai. A FAU também criou a OPR-33, um importante braço armado que levou a cabo dezenas de ações: expropriações de bancos, da bandeira da independência nacional, ataques às forças de repressão e sequestros políticos — um dos quais, em 1974, rendeu 10 milhões de dólares e permitiu que o partido criasse uma frente de combate à ditadura, que nucleou diversos setores da esquerda uruguaia.
Nos anos 1970, já sob a ditadura militar, a FAU possuía células em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Porto Alegre e na Europa, conforme comprovam documentos dos órgãos de repressão brasileiros. Essa militância teve seu preço, e os anarquistas contam às dezenas o número de militantes presos, torturados, mortos e “desaparecidos”. Esse breviário dá ideia da importância que essa organização anarquista alcançou no período e imediatamente sugere a pergunta: por que o anarquismo uruguaio se manteve tão vivo enquanto no Brasil, na Argentina e na América Latina, de modo geral, houve um inegável retrocesso? A pergunta, por si mesma, enseja outros questionamentos sobre o declínio do anarquismo em terras tupiniquins e sobre os motivos pelos quais a FAU — referência tão relevante, tão próxima geograficamente e que mantém viva sua militância até os dias de hoje — pôde permanecer quase desconhecida no Brasil, inclusive nos meios anarquistas, até o final da década de 1990 (2).
Até 1996, a existência e a história da FAU eram-me desconhecidas. No entanto, no mês de setembro daquele ano, acabei tomando parte num evento que marcava os 40 anos de história do partido. Desde então, o interesse despertado pela trajetória da organização anarquista uruguaia motivou uma pesquisa principiada em 1997, na minha graduação em História, na USP, e desenvolvida numa pesquisa de mestrado entre 2000 e 2003, na UNICAMP.
Alguns aspectos chamaram-me a atenção, pois contrastavam com o anarquismo brasileiro. O primeiro deles era o grau de presença da FAU nos movimentos sociais uruguaios. Em 1996, os anarquistas uruguaios militavam em sindicatos, movimentos barriales, rádios comunitárias e no movimento estudantil; e, ainda que o peso político da FAU, nessa época, fosse bem mais modesto do que nas décadas de 1960 e 70 — eles próprios reconheciam isso —, era incomparavelmente maior que no Brasil. Por aqui, o anarquismo estava restrito, salvo raras exceções, a centros de cultura, ao meio acadêmico, a grupos “alternativos” adeptos de um “estilo de vida” anarquista ou voltados para experiências comportamentais. Um segundo aspecto, sem dúvida relacionado ao primeiro, era o perfil de classe da militância. Enquanto no Uruguai os membros da FAU eram quase integralmente de origem popular, no Brasil boa parte dos anarquistas vinha da classe média. Esses dois aspectos relacionam-se a um terceiro: o tipo de concepção de anarquismo dominante entre os uruguaios, cujo conteúdo classista e organizador rejeitava cabalmente qualquer espontaneísmo.
Finalmente, era notável que a federação tinha um histórico muito intenso de atuação recente (sobretudo nas décadas de 1960 e 70), ao contrário do Brasil e da Argentina, onde o anarquismo, como força político-social, progressivamente desaparecera a partir da década de 1930 (3). Os reflexos disso eram evidentes: no Brasil, quase todos os anarquistas militantes sindicais das primeiras décadas do século XX haviam morrido e, mesmo entre os mais velhos, quase todos começaram seu ativismo político nos centros de cultura, num período em que o anarquismo quase não tinha presença social. O declínio da atuação anarquista no Brasil produziu um hiato entre a juventude e a geração mais velha, seja porque entre eles havia grande diferença etária, seja porque a veterana, formada no ativismo cultural e distante da atuação social, foi incapaz de oferecer uma orientação prática aos novatos. Assim, conformada ao papel de guardiã das tradições, a antiga geração mantinha um distanciamento para com a juventude. No Uruguai, ao contrário, a atuação contínua dos anarquistas formou diferentes gerações e a FAU contava com militantes em praticamente todas as faixas etárias. Além disso, a atitude dos mais velhos (muitos deles ex-dirigentes sindicais e atuantes na luta armada) em relação à juventude era de grande modéstia e podiam-se observar conversações francas e descontraídas entre jovens de vinte anos e militantes de setenta anos, raras no anarquismo brasileiro.
Assim, a atuação, o perfil de classe, o caráter do anarquismo, a presença histórica recente e até mesmo as relações pessoais entre a militância eram aspectos que evidenciavam um contraste entre o anarquismo uruguaio e o brasileiro e reforçavam o questionamento sobre as razões dessas discrepâncias. Nesse quadro, a inevitável comparação revelou-se um caminho profícuo também para compreender o anarquismo e o sindicalismo no Brasil.
Além disso, a história da FAU está relacionada com a resistência à onda autoritária que cobriu a América do Sul de ditaduras militares, entre os anos 60 e 80 do século passado. A estreita colaboração entre as ditaduras do Cone Sul, conhecida como “Operação Condor”, funcionou também contra os anarquistas uruguaios que atuaram no Brasil, como atestam as fontes oficiais hoje conhecidas.
Assim, mais do que um texto dirigido aos “especialistas” em estudos sobre o anarquismo, este é um livro voltado aos que se interessam pela história recente da América Latina e do Brasil, pela história de pessoas anônimas que, durante um período sombrio, lutaram por uma sociedade mais justa e mais livre.
Finalmente, é preciso trazer algumas palavras sobre a estruturação do texto. Este livro é, em grande medida, uma história da FAU para leitores brasileiros ou não uruguaios. Dessa forma, o livro aborda alguns aspectos históricos da sociedade uruguaia na qual a FAU se formou e atuou, que seriam dispensáveis ao leitor da “Banda Oriental”.
Além da introdução e da conclusão, o livro está dividido em mais quatro partes: a primeira delas aborda a formação do movimento operário e do anarquismo rioplatense desde a passagem do século XIX para o XX, contextualizando suas raízes históricas no quadro geral da sociedade uruguaia. As três partes subsequentes cobrem o período que se estende de 1952, quando ocorreram os primeiros esforços para a criação de uma federação anarquista no Uruguai, até 1976, ano em que a FAU foi atingida seriamente pelo golpe militar na Argentina. Elas se dividem da seguinte forma: a segunda começa em 1952 e se estende até 1967, quando o partido anarquista, já formado, é posto na clandestinidade; na terceira, é examinado o período de 1967 até o advento do golpe militar no Uruguai, em 1973; a quarta aborda o período entre 1973 e 1976, quando o golpe militar argentino causou o refluxo da organização anarquista e o exílio de muitos militantes.
O período posterior a 1976 esteve fora dos propósitos da pesquisa, pois suas particularidades demandariam um estudo à parte. Por fim, a conclusão procurou responder às questões formuladas inicialmente e sugerir novas possibilidades de estudo.
As traduções do castelhano são de responsabilidade do autor; apenas em alguns casos foram mantidos os termos e as expressões originais, especialmente os nomes de lugares, de organizações e de periódicos.
Convém lembrar que este livro é produto de uma dissertação de mestrado defendida em 2003. No entanto, embora tenha decorrido quase uma década entre a pesquisa e este seu lançamento, excetuando--se algumas alterações na escrita e no arranjo dos capítulos, o livro corresponde à dissertação.
Ricardo Ramos Rugai
(1) Cerca de 400 militantes em diferentes níveis de integração, quantidade significativa para uma organização de quadros num país do porte do Uruguai.
(2) A história da FAU começou a ser mais conhecida no Brasil a partir da segunda metade da década de 1990, entre a militância anarquista. A seguir, no final da década de 1990, foi divulgada de forma restrita, com os primeiros resultados da pesquisa que deu origem ao mestrado e a este livro [RUGAI, Ricardo. O Anarquismo Organizado: as concepções e práticas da Federação Anarquista Uruguaia, 1952-1964. 2003. 315 f. Dissertação (Mestrado em História) IFCH-UNICAMP, Campinas.]. Somente em 2002 a história da FAU começou a ser publicada no Uruguai, com o primeiro volume de uma série que narra sua história na ótica de um de seus militantes [MECHOSO, Juan Carlos. Acción directa anarquista: una historia de FAU. Montevidéu: Recortes, 2002.].
(3). O declínio do anarquismo no Brasil foi objeto de estudo em: BONOMO, Alex Buzeli. O Anarquismo em São Paulo: as razões do declínio (1920-1935). 2007. 451 f. Dissertação (Mestrado em História). PUC, São Paulo.


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